Resulta evidente que quem tem governado o tem feito sobretudo no interesse do grupo a que pertence.
Pese embora a crise económica provocada pela pandemia do novo Coronavírus encabece a lista de preocupações da Nação, não pode esta abstrair do grave problema político que se tem vindo a desenvolver no seu seio há quase duas décadas. Tal situação parece tomar hoje a dimensão de uma verdadeira crise institucional, e o desenvolvimento nacional está fortemente associado ao modo e intensidade como ela for combatida.
Tal crise aparece, sobretudo, sob a forma de falta de confiança. Se os portugueses parecem nutrir uma (culturalmente enraizada) desconfiança em relação a quem governa, os níveis de confiança parecem estar a deteriorar-se sucessiva e significativamente. Nesse sentido apontam os números de participação eleitoral: tendo em conta apenas os órgãos eletivos de soberania, de uma irrisória abstenção de 8.5% nas eleições para a Constituinte, evoluímos para 51,4% nas últimas eleições legislativas. Em sede de eleição do Presidente da República, a abstenção passou da cifra de 24,6% em 1976, para uma abstenção de mais de metade dos cidadãos eleitores desde 2011. Mais de metade do povo demite-se de praticar o acto mais essencial e expressivo da soberania popular. Porém, como o leitor saberá, há motivos para desconfiar. Afinal de contas, a nossa cultura é o corolário da nossa realidade.
Resulta evidente que quem tem governado o tem feito sobretudo no interesse do grupo a que pertence. A qualquer dos partidos que têm sido responsáveis pelos destinos do País falta um projecto político sólido de presente e de futuro, que envolva a melhoria da situação económica – que constitui a grande aspiração da maioria dos portugueses – e que tem hoje que ser conjugada com os desafios ambientais, com o envelhecimento demográfico, com o enorme desafio que será a coesão territorial, o investimento nos jovens e a criação de condições para que possam emancipar-se e realizar-se, a título de exemplo. As propostas são sempre sectoriais e altamente canalizadas para obtenção de voto (vejam-se as promessas sempre goradas de aumentos de reformas ou na função pública), e por isso sempre conjunturais e dirigidas não ao futuro de Portugal mas ao fim da legislatura. Como confiar?
Parece difícil, mas sê-lo-á ainda mais quando se repare no novo Regimento da Assembleia da República (que nos coloca como sendo um dos países com menos presenças obrigatórias do primeiro-ministro no Parlamento), ou quando se constate a tentativa de reduzir o número de debates sobre matéria europeia, ou o número de assinaturas necessárias para levar compulsoriamente uma petição a Plenário. Estas medidas enfraquecem a transparência das instituições e a capacidade de escrutínio e intervenção dos cidadãos na agenda do poder que é exercido em seu nome e interesse, fechando cada vez mais os centros de decisão e os grupos políticos e alienando os cidadãos, que cada vez mais sentem que isto não é feito para funcionar para si, como deveria. Na verdade, as instituições só mostram que temem o escrutínio e as consequências que do mesmo possam resultar, sobretudo a suscetibilidade de serem responsabilizadas.
É lógico que as consequências vão além de abstenção e alheamento, visto que há votos válidos a serem direcionados para forças que defendem princípios contrários ao consenso constitucional como resposta a este descredito; situação que têm vindo a suceder em vários outros países parceiros, e que se verifica agora também entre nós. Muitos desses votos não são de gente perversa, mas de cidadãos desanimados que procuram uma solução não razoável, e em larga medida mobilizada por uma propaganda tremendamente demagógica e intelectualmente dolosa. É preciso recuperá-los, e só podemos combater a tensão anti-sistema com um sistema que funciona para bem e para todos, facto suficiente para desferir um golpe na narrativa populista. A solução nunca passa por ela nem por quem a profere, constituindo aliás um factor de agravamento do fenómeno em análise a que importa obviar.
Em suma, só podemos voltar a ser uma democracia saudável se conseguirmos fazer regressar as pessoas à política, colocando-as no centro de toda a decisão dos órgãos da República. Construamos um sistema em que os partidos são grupos de pessoas que pensam activamente soluções para o bem comum, e não diretórios fechados; tomemos providências legais que dêem mais poder aos cidadãos, criemos uma cultura de intervenção, escrutínio, responsabilidade e transparência. Só assim estaremos prontos para enfrentar os principais problemas da nossa vida colectiva, bem como recuperar para os portugueses o que lhes falta: a confiança.
Lucas Oliveira , estudante de Direito.